segunda-feira, 27 de agosto de 2007

INTERDISCIPLINARIDADE III

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O gato que anda sozinho
[George Gusdorf]
parte III



—Universidade, Universalidade—





Todo o sistema de educação tem por finalidade a edificação do homem. Trata-se de conduzir as crianças e os adolescentes até à plena consciência da sua humanidade (...). Nas origens helénicas da tradição ocidental figura a noção de paideia, fundamento, através dos séculos, do humanismo clássico. Os gregos deixaram-nos igualmente a noção de enkuklios paideia, que a nossa palavra enciclopédia transcreve e que, na sua significação etimológica, quer dizer ensino circular. O círculo, forma perfeita, indica a necessidade de obrigar os alunos a fazer a volta completa dos conhecimentos disponíveis, reunidos na unidade de uma forma harmoniosa. Devemos à cultura medieval a instituição da universidade (...). A universidade é o centro da província pedagógica, o lugar próprio do conhecimento. Ora, a palavra universitas designa, antes de mais, universitas magistrorum ac scholarium, a reunião dos professores e dos alunos na prossecução em comum das actividades do espírito. Mas designa também universitas scientiarum, a comunidade das disciplinas na unidade de um mesmo saber, fundamento da cultura cuja invocação reúne professores e estudantes. A interdisciplinaridade, a exigência da unidade do saber, constitui a sede da universidade, a sua original razão de ser. Esta razão de ser foi perdida de vista pelos universitários modernos. O conhecimento unitário explodiu, fragmentou-se numa infinidade de "saberes" cujos especialistas, longe de colaborarem num grande desígnio comum, vivem sob um regime de concorrência e de inveja. A estreiteza de espírito repercute-se em cascata em todos os níveis do sistema educativo. O declínio das universidades, infiéis à sua missão, é assim uma das principais causas da crise universal do ensino. Dir-se-á, claro, que a imensa acumulação dos conhecimentos nos tempos modernos impõe aos interessados uma divisão do trabalho intelectual análoga à que prevalece no domínio da produção industrial. Ninguém pode saber tudo, e a especialização é uma doença incurável. (...) A explosão do saber humano, isto é, do espírito humano, é a contrapartida do desaparecimento da figura humana na arte e na civilização contemporâneas. Se a lógica da actividade parcelar se justifica pela fabricação em série de objectos de consumo corrente, não tem lugar na elaboração da cultura, que procura promover uma síntese da humanidade. Um sistema educativo digno desse nome só tem valor se assumir a sua função de ordenador do conhecimento, em virtude de um imperativo de convergência, em oposição a todos os imperativos de divergência em vigor no mundo actual. (...) No princípio de qualquer reforma do ensino deveria, portanto, existir uma mudança de mentalidade dos próprios professores (...). Cada professor da especialidade deve tomar consciência da missão que o incumbe de ser, simultaneamente, um revelador da totalidade. (...) O indispensável espírito de análise deveria ser completado e compensado pelo espírito de síntese, o desejo de evidenciar as articulações de conjunto do conhecimento.

in "Interdisciplinaridade. Antologia", co-org. Olga Pombo, Henrique Guimarães e Teresa Levy, Campo das Letras, Porto, 2006.